domingo, 22 de outubro de 2023

Nossa relação entre o bem e o mal


The art of Jeff Koons creates a world beyond taste. It rubs the least respectable mass-cultural artefacts into the noses of people brought up to think art is about the good, the true and the lofty

The Guardian – entrevista com Jeff Koons, 2009


Micheal Jackson and Bubbles” (1988) é uma escultura em tamanho maior que o real e justifica os rumores sobre as controvérsias e polêmicas na arte de Koons. Homenagem ou repulsa são uns dos sentimentos que nos acometem de imediato. O rei da música pop, comprou o macaco de um adestrador e o criou em casa, na sua famosa Neverland, onde ganhou um berço, dentro do quarto do "papai". A história é que depois do nascimento do verdadeiro herdeiro da Terra do Nunca, Bubbles, o macaco, ficou agressivo e como precaução, foi levado para uma reserva. Supostos indícios de que o cantor o maltratava também foram à impresa.

Coinscidentemente, no mesmo ano o filme documentário, “Nas montanhas com os gorilas” (1988), com perfeita atuação de Sigourney Weaver, interpretando a antropóloga Dian Fossey, foi lançado. Dentre as tensões e dramas na jornada da personagem, um diálogo entre a protagonista e o fotógrafo contratado pela Revista National Geographic ascende o discurso dicotômico entre o bem e o mal. Em sua obsessiva luta pela preservação de um clã de gorilas ameaçada por implacáveis caçadores ela está disposta a travar uma guerra, quando o amante fotógrafo descreve a real situação: “Quem você acha que paga a assinatura da revista que fica nas salas de espera e consultórios bem decorados com cinzeiros exóticos, em formato de mão de gorila? Quem você acha que coleciona esses bichos? Deixa eu te dizer, são os mesmos que pagam o seu salário para estudar os gorilas, mas não para adotá-los como família, você entende?”

Os gorilas são os maiores primatas ainda existentes na Terra. Compartilhamos 98,4% do DNA com eles e sua força ultrapassa seis vezes a nossa. Para quem assistiu o clássico “Planeta dos Macacos” entenderá a tensão e o medo sobre estes animais, que são tão próximos a nós. 

Outra curiosidade cinematográfica, que aborda um primata em especial é o filme “A Bússola de Ouro” (2007) que foi um fracasso de bilheteria, porque colocou em pauta a ciência contrapondo a religião sobre a origem de um intrigante "pó", ainda deu uma discreta cutucada, na mensagem subliminar, sobre a campanha publicitária do refrigerante mais vendido do mundo com a imagem emblemática de um urso polar totalmente embriado fora de seu habitat. E para vocês que estão 'pagando pau' a respeito do tema do filme “Som da Liberdade” (2023), há 16 anos atrás este estilo fantasia já tocava o dedo na ferida sobre o assunto de crianças misteriosamente desaparecidas. Na ficção de “Bússola” cada humano tem a alma materializada através do daemon, um bicho de estimação, um elo místico e eterno com seu companheiro, assim como têm os bruxos de Harry Potter. O detalhe bizarro é que o único deamon do filme que não fala com seu humano é o macaco dourado da vilã, interpretada pela belíssima Nicole Kidman. Alguns erros e confusões no roteiro prejudicaram na produção da obra, eu admito, mas eu gostei do filme mesmo assim e para minha felicidade a HBO deu continuidade na série, His Dark Materials.

Ademais, bem e mal estão por aí, presentes diariamente, todo dia, o dia inteiro. As mais variadas expressões de arte: filmes, livros, músicas, esculturas e tantas outras são recursos saudáveis para questionarmos nossa conduta ética e moral em sociedade. O que queremos, o que podemos e o que devemos fazer. A busca ilimitada por saciar caprichos, desejos obscuros, obsessão material ou afetiva adoecem nossos sentidos, expandem horizontes que não deveriam ser habitados, mas apenas preservados. Cabe aí uma reflexão se o dissernimento da nossa dicotomia anda bem e mal, ou bem mal. 



 

domingo, 15 de outubro de 2023

Armadas ou Amadas

 

 Acabo de assistir a série “Cangaço Novo” na Prime Video, ironicamente no feriado de Nossa Senhora Aparecida e dia das crianças (quem assistiu entenderá). Com direção de Fábio Mendonça e Aly Muritiba, a superprodução brasileira está pra lá de Quentin Tarantino ou Glauber Rocha onde o sertão encontra com Hollywood no mesmo nível cinematográfico. Lampião deve tá dançando forró no céu (ou no inferno) com essa homenagem arretada dos diabos. Impecável fotografia e atores de tirar o folego, a química do elenco deu certo, deu certíssimo e feliz ou infelizmente a gente acaba tomando partido de toda sanguinolência, seja na ficção, seja baseada em fatos reais. É difícil ficar do lado de alguém quando todos os lados estão errados. Imaginem uma criança com uma infância sem oportunidades vivendo num lugar quase que desértico. Daí, um dia ela presencia o assassinato de toda sua família por um grupo político, ou um grupo religioso, ou um grupo de assassinos, cangaceiros ou terroristas. Seja lá o nome que se dê a estas criaturas desumanas, o fato é que uma criança assistiu a tudo isso e para ela isso passou a fazer parte de sua vida, tal como uma criança burguesa assiste ao bullying no seu colégio burguês. Não querendo comparar a gravidade dos fatos, mas a diferença seria a localidade, uma nasceu no sertão, num deserto de dar dó, na pobreza, a outra nasceu na mata atlântica do lado das ondas, na maresia, na riqueza. No entanto, todas as duas são capazes de amar, de matar, de se posicionar. Difícil mesmo é adotar uma postura ética, se filiar à um partido confiável ou ficar de um lado da história, quando tudo parece ser uma grande nuvem de fumaça.

O trabalho transgressor do artista inglês Bansky, que mantem identidade desconhecida desde 1990, transita entre o grafite, a crítica social e ativismo político em stencil de grande escala registrado nas paredes e fachadas das maiores metrópoles do mundo. O artista cria contextos de cunho social engajado, sem muito humor, ou com um humor quase sarcástico que leva o espectador a levantar questões éticas e morais a respeito das falhas humanas e procedimentos constitucionais da sociedade. Flower Thower (Atirador de Flor) é uma de suas imagens intrigantes, que ora remete à violência do terrorismo, ora abraça a causa da paz num ato romântico de altruísmo. O conflito da guerra armada, ou amada nas obras de Bansky ultrapassa o pragmatismo da arte contemporânea que se estabelece em galerias de arte, museus ou casas de leilões. A obra do artista é urbana, para todos, uma arte democrática que conversa com o público e levanta questões urgentes sobre o nosso modo de vida.

A imagem é imponente e pode ser atribuída a um espaço atemporal. O atirador de flores poderia ser um dos Hamas ou um  cangaceiro, ou um talibã, ou um xiita, sunita ou tutsi ou hútu. 

Um ícone do grafite internacional, as intervenções do artista inglês validam a ruptura ao protocolo da contemporaneidade e faz despertar um novo olhar sobre o submundo.

"Há soldados armados, amados, ou não. Quase todos perdidos com armas na mão". Geraldo Vandré

Mural original Beit Sahour, na Palestina, 2020



fonte Wikipedia




 

 

 

domingo, 8 de outubro de 2023

Os rapazes do Renka

 Na contramão da tendência do mercado contemporâneo, eis que um coletivo surpreendentemente arrebata a cena artística e distorce o discurso "modista" para resgatar lá de dentro do útero a arte produzida por rapazes crescidos. "Individualidades Simultâneas" é a mostra na Vila Cora Coralina do coletivo RENKA formado por Ebert Calaça, Douglas Dojla, Mateus Dutra, Danilo Itty, André Morbek, Renato Reno e a convite da turma, o escultor Divino Diesel. Composto exclusivamente por homens, que há 5 anos frequentam o mesmo ateliê em trocas coletivas e produções individuais, toparam o desafio de sair da "toca" para dar a cara a tapa ao público goiano. Bastante fluentes na linguagem urbana, popular e regional, cada artista produz com sua característica, técnica e pesquisa própria, no entanto, o que mais chamou minha atenção foi a harmonia estética e a nostálgica reminiscência infantil. Ali, naquele generoso salão de exposição, pude presenciar uma atmosfera feliz, feminina, familiar e, ao mesmo tempo transgressora, rebelde e crítica, como as Artes Visuais tem de ser. 

A expansão do grafite que invadiu as paredes da instituição é um dos sintomas desta revelia (não no mal sentido), mas com um olhar inverso para este movimento artístico. O espaço urbano que adentra o particular para finalmente atingir seu real propósito, atrair os olhares do espectador às "flores" que nascem nas fendas do asfalto. A arte urbana é o termômetro da sociedade, ela é quem grita nas ruas como anda a violência, a desigualdade social e o desrespeito ao Meio Ambiente. 

A empatia entre as 100 obras expostas, a meu ver, ganha notoriedade ao enaltecer a feminilidade: seja na boca ou nos olhares sensualizados e não "fotoxopados", de Dojla; sejam nas bocas abertas de afiados caninos das feras adornadas com estrelas, de Itty; ou nos corpos nus das mulheres de Calaça, que se "camuflam" também de feras; sejam nas asas e nos peitos dos macacos ou macacas, assim como no castelo de ouro, de Reno; ou mesmo na pintura estilizada ou estereotipada de Dutra, que optou pela paleta cor-de-rosa "estilo Barbie" e; por fim, os mosaicos de Morbek, que encobrem silhuetas femininas com ranhuras de ponta de prego na superfície da tela.

Sim, podem dizer que estou "viajando", mas a arte não é para isso?! Para tirarmos o pé da realidade e expor um ponto de vista que nos permita respirar um ar mais onírico, mais humano, mais afetivo da vida!

 A imersão do coletivo para a produção desta mostra deixou claro a forte correnteza pela qual todos atravessaram, expondo sentimentos da infância, traumas, superações e inevitavelmente a relação materna, seja pela avó, mãe, namorada, amante, esposa ou filha. O arquétipo da Terra Mãe, Pacha Mama, Gaia, a Mãe Natureza.

Ficou evidente, pelo menos para mim, como a força de tanta testosterona reunida conseguiu abraçar carinhosamente a ardilosa fragilidade do sexo oposto, aquele que gera e cuida. Senti, que em meio a tantos contratempos, correntezas, correrias e contramãos, a criança interna que habita em cada um dos artistas, caminha e nada por aí em águas bravias, sem medo de se afogar e nem de se arriscar, mas literalmente riscando.

É isso aí, rapazes, a braçada tá forte. Continuem nadando!

Fachada pelo RENKA: Dojla, Calaça, Itty, Morbek e Dutra


"Tempos de Menino", por Reno, na Vila Cora Coralina


domingo, 1 de outubro de 2023

Insólitos em comum

Na História da Humanidade os primeiros artistas foram denominados de coletores, porque coletavam toda infinidade de objetos que lhe eram úteis ou não, para sua sobrevivência. Fossem eles pigmentos para registrar seus feitos nas cavernas, suas caças, suas crenças, conchas, pedaços de paus, galhos, madeiras, ossos, pedras, tudo, tudo que estivesse ao seu alcance. Artistas, artesãos, aficionados, afetados, apaixonados ou acumuladores, toda coleta tinha um propósito.
Recordo de quando conheci o artista Rodrigo Flávio em fins dos anos 90, ambos éramos virgens e inocentes, coletando experiências e objetos para uma jornada inesquecível no universo das Artes. Lembro que mamãe realizou sua primeira mostra individual, as paredes vivas e coloridas da Galeria me pareceram um debut da estação primaveril da nossa puberdade em ascensão. O prenúncio de uma caminhada em tons fortes, vívidos, reluzentes e quentes. Viajamos juntos, para montagem da mostra coletiva na Galeria de Arte de minha tia, em Campo Grande/MS. Tudo foi um aprendizado divertido de dois adolescentes descobrindo os prazeres e dores do amor e do sexo. Visitei Rodrigo em seu primeiro ateliê, no Setor Novo Mundo, quando assumiu publicamente seu primeiro namorado. Nossas coletas emocionais foram um tanto sincrônicas, em períodos de descobertas ambíguas da dura realidade de se tornar adulto. 
Minha primeira curadoria foi a mostra coletiva GYN 7, em 2006, onde, dentre os sete artistas goianos, estava Rodrigo Flávio e sua inconfundível paleta de cores viva e quente. Nesta época o artista já havia coletado uma diversidade de elementos que vieram fazer parte das formas e contrastes de sua pintura. Eram massinhas de modelar que se transformavam em esculturas e fotografias, objetos de piquetes que se transformavam em castelinhos de madeira que pareciam mais fortalezas militares, sua coleção de vidros, espelhos, a modelagem no gesso e seus índios em resina, seus pinceis, suas tintas, suas plantas, sua coleta sem fim...
A partir da separação de meus pais e consequentemente o distanciamento de minha mãe da Galeria, Rodrigo alçou outros voos coletando sonhos insólitos de artista goiano em território latino americano. Meu sonho insólito foi vivenciar a maternidade, a cama, mesa e banho. Duas jornadas opostas se convergindo hoje para um impulso em comum, um maior compromisso com a cultura, Rodrigo na contínua busca por coletas artísticas e eu coletando "flores" para o Jardim.
Admirada e feliz pela retomada deste querido artista é gratificante dizer que fiz parte de sua história e trajetória. Percebo em suas coletas um amadurecimento viril que emerge de falos esguios de seus objetos étnicos e uma percepção mais construtiva das formas geométricas em sua pintura, sem abandonar a característica paleta de cores, mas que, por ora, adquire tons um pouco mais amadeirados, amarronzados, enfim, mais adulto ou sombrio.
É isso, querido coletor, insólitos ou incomuns, porém sempre impulsionados pelo inconsciente coletivo da Arte. Embora nossos caminhos seja incomum, ou no trocadilho, em comum à Arte, almejo que nossas vidas continuem da cor de sua paleta: sempre colorida e quente! 
Vida longa à suas coletas!

Mostra GYN 7, em 2006, na Marina Potrich Galeria
Objetos de madeiras coletadas pelo artista para mostra "Impulsos Insólitos", 2023, na Vila Cultural Cora Coralina (imagem website)