domingo, 31 de julho de 2022

buzios buzina barulho

 

O termo búzios vem do latim bucina, que significa buzina, devido a algumas conchas que serviam de trombeta para os pescadores e jangadeiros anunciarem sua chegada aos portos. No decorrer do texto entenderemos, porque os búzios fizeram tanto barulho. Ao contrário do que muita gente pensa, o antigo e mais popular oráculo, o jogo de búzios, segundo historiadores, chegaram às mãos dos africanos através dos turcos. A duradoura guerra travada entre otomanos, lusos e etíopes, em meados e 1500 foi uma das teorias para que este intercâmbio cultural acontecesse. Coincidentemente tudo indica que esta guerra teve início por um conflito religioso entre a potência cristã de Portugal e a potência islâmica dos Otomanos.

Isso não é novidade, afinal, as maiores batalhas da Humanidade são regidas em nome da sagrada religião alheia. De fato, os búzios tiveram um impacto cultural e religioso. A cultura africana adotou a concha como pupilo das adivinhações entre os iniciados nos rituais do Candomblé. Há uma preparação e cuidados especiais para que o jogador de búzios esteja realmente preparado para responder as perguntas sobre os mistérios da vida que tanto o destino insiste em nos ocultar.

Digo popular, porque o jogo de búzios é muito difundido entre a população mais exclusa da sociedade. Os negros, mestiços e simpatizantes em geral já vivenciaram, vivenciam ou vivenciarão esta experiência um dia.  O jogo divinatório consiste numa peneira consagrada onde são depositadas 16 conchas, que simbolizam os 16 orixás do Candomblé. Cada orixá tem a sua devida função para orientar o consulente. Este tipo de oráculo é comandado por um condomínio mítico denominado Odú, que na Psicologia seria chamado de padrões comportamentais.

Ao contrário do que a grande maioria preconceituosa pensa, a compreensão de Ifá, que é um sistema divinatório oriundo da cultura yorubá, diz respeito a uma complexa literatura mitológica que descreve a gênese do mundo. Poeticamente simbolizada pelas forças da Natureza, os mitos africanos dissertam sobre as proezas dos orixás, os conflitos entre seus sentimentos e as escolhas que determinam seus destinos.

“Reza a tradição que os deuses dos terreiros têm origem nos clãs africanos, divinizados há mais de 5 mil anos. A história que se conta é que eles foram inspirados em homens e mulheres capazes de intervir nas forças da natureza por meio de caça, plantio, uso de ervas na cura de doenças e fabricação de ferramentas. Os orixás têm características humanas, virtudes e defeitos: podem ser vaidosos, temperamentais, ciumentos, maternais. Os atributos, quase sempre, têm um paralelo com o meio ambiente”. (https://super.abril.com.br/sociedade/os-orixas-mais-populares-do-brasil/)

A analogia dos mitos africanos com o comportamento humano é válido, assim como a mitologia grega foi validada por Sigmund Freud para a Psicanálise. Haja visto o sincretismo, onde a personificação do temperamento dos orixás em relação aos santos da Igreja Católica antecederam os cânones cristãos.

Por isso, fiquem atentos aos sinais, os búzios ainda fazem muito barulho!

Ilustra o texto Colar Oxum: Deusa das águas doces (rios, fontes e lagos). É também deusa do ouro, da fecundidade, do jogo de búzios e do amor.




domingo, 24 de julho de 2022

Sempre

 

Sempre esperei que minha morte aconteceria antes da partida de papai.

Talvez por medo de sentir a dor de sua ausência, ou por me sentir impotente em dar continuidade ao patrimônio que ele deixou.

Talvez por ter sido uma filha ao invés de um herdeiro TatãO com “o” maiúsculo.

Talvez por não haver tido um exemplo religioso ou ritual espiritual sobre os dogmas bíblicos e seus temores.

Talvez e simplesmente por não querer aceitar a morte do amado patriarca da família.

Mas papai se encarregou de simplificar e facilitar as coisas para mim. Ele foi flexibilizando seus sentimentos e suas decisões na medida que seu corpo desfalecia.

Foi amaciando sua integridade e descobrindo que sua filosofia e sua força também eram vulneráveis.

Foi apaziguando suas reações às incontinências do corpo e incontingências da vida.

Sou-lhe grata por isso!

Mesmo não sendo de sua vontade, vovô amoleceu o coração, aceitou certas verdades e se entregou à Thanatos para sua eterna jornada.

Sim, ele facilitou as coisas para mim. Aos poucos, como é a piada do português sobre “o gato que subiu no telhado”, a ficha foi caindo. Primeiro ele se isolou, depois caiu e se ralou, caiu, caiu, daí enfraqueceu lentamente, então caiu de novo, se quebrou e não mais se levantou.

Quisera eu que seu sofrimento não tivesse durado o tempo que durou, mas foi tempo suficiente para que eu pudesse me fortalecer e aceitar seu merecido descanso.

Obrigada, papai, porque até nos últimos momentos você se mostrou um verdadeiro pai, admitindo seus erros, rezando comigo, talvez sua primeira e última oração.

Você rezou e para mim,  isso foi uma glória, porque todos nós somos falíveis e mortais, mas nossa alma é dádiva, por isso o passado passa, o futuro é mistério, mas o agora é um presente de Deus, de Zeus, da Mãe Natureza.

Você presente, sempre...



domingo, 10 de julho de 2022

Famiglia

Papai sofre de um tipo de anemia crônica que só se reestabelece com a transfusão de sangue ou ferritina na veia. Sua origem pode ter diversas vertentes como a genética, sintomas emocionais relacionados à co-dependência narcisista, ou características de cunho espirituais, como ilustra bem os contos de vampiro, que só sobrevive se alimentando de sangue. Inconsolavelmente comovida, decidi doar sangue para um dos maiores centros clínicos de Goiânia, como ato de compaixão ao meu pai e a tantos outros que necessitam de transfusão.

Descobri que fazer doação pode não ser tão simples assim! Primeiro você precisa passar por uma triagem sobre a data e prazo de suas vacinas e tatuagens além de estar com o peso acima de 60kg. Se você passou este teste, tem mais algumas 100 perguntas que você deve responder num ping pong. Este foi o desafio mais íntimo que tive depois da gravidez e da terapia: “Você transou de camisinha nos últimos 6 meses? Você tem parceiro fixo? Você tem ou teve câncer, fez cirurgia, teve diarreia na semana passada, covid, dengue, tem filhos, abortos, está menstruada?... ‘paga suas contas em dia’?” (só pra distrair) Quase desisti de doar meu precioso e caro (uma bolsa de sangue pode custar de 500 a 20 mil reais!). Mas, por fim consegui encher uma bolsa de 450ml mesmo com os olhares desconfiados da enfermeira sob a queloide acima da minha veia, que ela provavelmente pensou serem excessivas sessões de doação, mas que (em verdade), foi um intensivo tratamento de auto-hemoterapia. Há de se registrar também os cuidados pós doação como evitar exercícios físicos, carregar peso, se alimentar e beber bastante líquido, além de eventuais efeitos como hematoma, queda de pressão, febre, desmaios, tonturas, mal estar, náuseas e vômitos. (Tô achando o valor da bolsa de sangue justo!)

Vampiros ou não, estamos conectados internamente pelo mesmo líquido vermelho. O sangue rege uma orquestra perfeita dentro de nosso corpo frágil, vulnerável e mortal. Descobri meu ponto fraco estudando as fragilidades da anemia. Felizmente não sofro desta fraqueza, mas toda tensão emocional desaba sobre meus dentes e gengiva. Sofro de uma obsessiva vigília familiar, onde me encarrego de entender e me responsabilizar pelas decisões dos meus entes queridos. O bruxismo pode ser um aspecto de negação dos sentimentos hostis e a necessidade de controle das situações, daí o ranger dos dentes e retração da gengiva.

Cada um tem que assumir seu papel e tomar consciência de das causas e efeitos. Diria a criança que aprende um refrão: “Ema, ema, ema, cada um com seus problema” e sigamos o plano. Geneticamente interligados, numa teia, numa veia de ligamentos que nos conecta e converge para situações extremas, extensas e extraordinárias, somos todos fadados ao fim, ao falecer dos órgãos, dos ossos, dos dentes. Tudo que começa, termina e recomeça num novo ciclo.

E viva a famiglia!

Ilustra o texto minha tia, irmã de papai que fundou sua galeria de arte com o apoio da nossa família. Mara Dolzan vive e mora em Campo Grande, cuja galeria de mesmo nome atua no mercado há mais de 40 anos. Gaúcha de nascença, recebeu título de cidadã sul-mato-grossense por contribuir com a cultura e a arte no Estado.

Minha tia posa com o anel “Cubo Mágico” feito sob medida.



domingo, 3 de julho de 2022

Origem brasileira

 O estudo da etimologia das palavras e a verificação de nossa evolução fonológica talvez sejam a chave para identificar como uma cultura tão diversificada fundou seu próprio dialeto. Pois sendo tantas as apropriações que interagem dentro do nosso vocabulário, advindas de línguas tupis e tribos africanas, ou mesmo em gírias, cacoetes e vícios gramaticais vindos do latim, francês, italiano, inglês and what ever é quase uma heresia dizer que praticamos a língua portuguesa! Seria impossível acreditar que ninguém ainda não saiba  que o forró veio da expressão: for all, uai!

A palavra favela, por exemplo veio do termo fava, uma planta que nascia nos terrenos onde a população mais carente da sociedade se estabelecia e construía seus barracos. O berimbau é um instrumento musical primitivo que tem suas raízes africanas, conhecido como urucongo, ou urucungo. Para sua confecção se utilizam madeiras que envergam, mas não quebram, sendo preferencialmente cortadas em estações específicas do ano. As mais populares são o guatambu e a beriba, nome que remete ao termo do instrumento e que tem origem no tupi.

"Berimbau, um pedaço de arame um pedaço de pau"

O significado de biriba é pequeno, pouco, um pedaço de pau pequeno para se fazer um arco musical. Se observarmos cuidadosamente nossa língua perceberemos que é tão miscigenada quanto nossa nação. Tá tudo tão misturado que fica difícil saber o que veio de onde e para onde vai. Quem sabe está aí a magia da vida, a mandinga, o mistério. 

Denominavam se mandingueiros, os escravos africanos que sofriam árduos castigos de seus senhores, mas não desfaleciam. Acordavam no dia seguinte vivos, sóbrios e ainda fortes para trabalhar.

Um dos mais belos achados deste livro é ter sabido ler, na gramática corporal da capoeira, uma teoria política – a dialética da mandinga – cujo calculo está no aproveitamento dos espaços vazios deixados pelo poder e cuja prática se realiza no exercício da sedução sobre os poderosos, arma talvez universal dos fracos (O mundo de pernas pro ar, Letícia  Vidor de Souza Reis, 1997, orelha da capa do livro).

Os espaços vazios das praças, do pelourinho, das senzalas, das favelas... Uma manifestação que ainda clama por mudanças políticas, econômicas e sociais. 

Outra palavra que sofreu variação e carrega consigo os mesmos vestígios da capoeira foi samba. Oriunda da palavra semba, do quimbundo, que significa oração, há estudos que enxergam uma semelhança com a origem tupi, cama ou camba.

A análise do escritor Luíz Antônio Giron,  para a extinta Revista Bravo, sobre a origem e descendência do samba vai conforme as teorias do antropólogo Darcy Ribeiro. No artigo "O samba no formol" (2002) ele revitaliza a cultura brasileira, justificando essa manifestação como mérito da nossa miscigenação:

Além de tudo é necessário pôr a questão no seu devido lugar. O samba não é negro, como também não é branco e nem índio. De fato, o gênero resulta da miscigenação dos brasileiros e suas diferentes   origens. A origem do termo pode ter sido africana, mas com o tempo, assumiu novos corpos e se misturou com todas as etnias que tinha à disposição. Samba não consiste em gênero puro, mas mestiço; não tem origem definida e diz respeito a todos os brasileiros independentemente de cor ou raça.

Sem mais, me atenho a concluir que somos vários povos num só, conectados por um dialeto inventado. Por isso, quem ainda insiste em dizer que não gosta de samba, "bom sujeito não é, ou é ruim da cabeça, ou doente do pé"!

Ilustra o texto, imagem do Mestre Camisa pelo fotógrafo André Cypriano e Colar Berimbau.