domingo, 26 de junho de 2022

Sem ou Cem

 Há curiosas vertentes ideológicas de historiadores sobre a pergunta que não quer calar: o que veio primeiro para nossa sobrevivência, a arte ou a arma? A origem do instrumento musical do berimbau ou a confecção do arco e da flecha? É preciso comer para não morrer de fome, ou precisamos da arte porque a vida não basta?

Completados 100 anos da efeméride da Semana de Arte Moderna em 1922, é ainda possível correr para visitar a mostra "Brasilidade Pós-Modernismo", no Centro Cultural do Banco do Brasil, em Belo Horizonte que começa no dia 29/06. Com curadoria da fantástica Tereza de Arruda, a mostra é um aparato visual contemporâneo de 51 artistas ("uma boa ideia"). Pincelados por uma triagem rigorosa, não por acaso a curadora organiza em seis núcleos temáticos a disposição das obras e seus autores: Liberdade, Futuro, Identidade, Natureza, Estética e Poesia. 

Formalmente apresentada para ela, na casa de um grande colecionador, pude confirmar sua genialidade, sua enérgica habilidade de engajamento e seu discurso nacionalista entre benditas palavras pulsantes, que enobrecem nossa cultura e admitem que nosso senso estético traduz a tão sofrida formação étnica dentro de uma realidade social desigual, carente de diálogo, mas rica em criatividade para "se virar do jeitinho que for". 

Cem anos, ou sem comida, sem combustível, sem carteira de motorista a gente vai levando, com cem ou dois ou nenhum patinho na lagoa. A gente canta para espantar os males quando não tem o que caçar, porque um dia é da caça outro do cantor!

Primorosamente elaborado, o catálogo-livro registra todas as obras da mostra com textos dignos de atenção. Tereza de Arruda é historiadora de arte e curadora independente, vive desde 1989 entre São Paulo e Berlim onde estudou História da Arte na Universidade Livre de Berlim. A mostra "Brasilidade Pós-Modernismo", faz jus à curadora ou vice-versa, porque nos versos dos poetas, quem tem uma nêga chamada Tereza e uma arruda atrás da orelha é privilegiado por natureza e protegido por todos os santos, "mas que beleza"!

Obrigada aos artistas brasileiros, que alimentam nossa alma com esperança e conhecimento, porque sem isso, ou cem reais ou virtuais não estaríamos livres da fome de viver!

Ilustra o texto duas apropriações da obra "Índio Civilizado" (1835), de Jean-Baptist Debret, a primeira por Ge Viana, na mostra do CCBB e a segunda tatuada no meu corpo.




domingo, 19 de junho de 2022

Alma Brasileira

 

Wet Tennis* é a sigla de “when everyone tries to evolve, nothing negative is safe” (“quando todos tentam evoluir, nada de negativo fica seguro,” na tradução livre). Essa foi a inspiração da dupla de gringos Sofi Tukker, composta por um estadunidense e uma alemã que misturam eletropop, bossa nova, samba e muita criatividade para criar uma positividade contagiante em oposição a pandemia e os danos profissionais que sofreram pelo cancelamento de shows e isolamento. Mas a dupla foi surpreendida pela comunidade de fãs e a sigla pegou, como um mantra de esperança! O sucesso foi inevitável como contam em recente entrevista à Revista Rolling Stones. A dupla confessa que a paixão pelo Brasil foi um dos responsáveis pelas mais de 100 milhões de reproduções no Spotify. O jogo de palavras em português, inglês, francês, espanhol, portunhol que dão o tom da ginga musical da dupla gringa trazem uma balada inclusiva que valoriza a cultura brasileira e engaja a nossa versão tupiniquim num patamar internacional pop, para quem gosta ou não de samba!

O discurso vale para nova "Katia Flávia", Anitta, que articula bem com as línguas (aqui em duplo sentido!). A garota do Rio e do museu de cera canta em idiomas diversos e causa um o furor, querendo ou não as famílias de bem, recatadas, do lar, do mar, do bar. Essa fórmula é muito difundida pela latina do pop, Shakira, que sempre cantou em espanhol e inglês. Outro e mais novo fenômeno musical, que mistura hip hop coreano com a balada pop do idioma inglês é a banda sul-coreana BTS – Bangtan Boys, que acabou de anunciar uma pausa para atuarem em carreira solo. O sucesso fulminante e o atual resguardo da banda andrógena acaba de gerar uma queda na bolsa de valores.

Poderia ficar aqui citando tantos outros artistas que entenderam que uma língua só não faz verão, mas me atentarei à canção Brazilian Soul (para acessar a música clique no link e escute) de Sofi Tukker porque nenhum melhor que o Brazil para provar que essa mistura linguística tropical é ainda a mais calorosa de todas! A poesia cantada, articula uma brincadeira com as palavras e sugere um encantamento cultural, um ritmo afetivo, um berço natural do planeta da terra, da água doce, salgada, quente e querida, meu bem! Um jeitinho dengoso, elogioso e nostálgico de entender a diversidade de um país que vale por cinco. Nem preciso dizer que citar o termo capoeira já foi suficiente para ganhar minha atenção.

Ilustro o texto com o “Colar Maculelê”. Dança popular brasileira de origem afro-indígena onde os participantes desferem uma dança-luta com bastões no ritmo da música. Na África, segundo alguns historiadores os negros utilizam pedaços de paus chamados leles. A rivalidade era intensa entre as duas tribos rivais, os Macuas e os Malês. Os Malês diziam: “Vamos pegar os Macuas à lelês”.

“É pau, é pedra, é o fim do caminho/ É um resto de toco, é um pouco sozinho”(Tom Jobim)




Wet Tennis* o estado físico dos atletas que praticam tennis, suado, molhado, fadigado


domingo, 12 de junho de 2022

Antes de casar sara

A mitologia africana é tema do espetáculo de dança da companhia de Deborah Colker. Intitulada "Cura", a história é narrada através da voz do neto da coreógrafa, que conta a trajetória do orixá Obaluaê, o deus da cura e da doença.
Obaluaê nasceu com uma enfermidade. Foi tomado por feridas ao longo de todo o seu corpo. Sua mãe, apavorada decidiu abandoná-lo na beira da praia e fugiu. Iemanjá, a rainha do mar achou a criança, a abraçou com a espuma branca e macia das ondas do mar e cuidou do menino. Embora feliz com a mãe adotiva Obaluaê é rejeitado pelos humanos, que temem sua doença. Por causa disso ele se vinga, causando uma trágica epidemia. Para se manter excluso e no anonimato é confeccionada uma vestimenta especial, uma capa de palhas para tampar todo seu rosto e corpo. Um dia os orixás são convidados para uma festa e Obaluaê vai com sua vestimenta e causa grande curiosidade. Ele fica envergonhado em deixar suas feridas à mostra, mas é surpreendido quando tiram de supetão sua capa de palhas. Porém, incrivelmente o que é visto daí não são suas chagas e sim uma intensa e dourada luz que reflete de seu corpo. Assim os orixás o aceitam e ele recebe o dom da cura.
A coreografia do espetáculo é forte, intensa e acrobática como todo trabalho de Colker, mas há algo mais maduro, triste, doído e real, principalmente numa época pós pandêmica. "Cura" conta também a realidade de seu neto de 12 anos que sofre de epidermólise bolhosa. 
Perceber este 'namoro' entre a doença e a cura é um desafio que ainda caminhamos para compreender os mistérios do destino. Passar por dificuldades, enfermidades, tristezas é um sofrimento que tentamos evitar a todo custo. Nos anestesiamos e fingimos nos divertir com o que o mundo comunista nos oferece, mas será que adianta? Só depois de sentir na pele a rejeição, o bullying, a carência e a sofreguidão é que nos tornamos fortes, capazes e prontos para resistir novamente mais um ciclo de desafios que estará por vir.
Obaluaê não teria conquistado sua hierarquia se tivesse nascido com a pele de pêssego. Sua luta e persistência clamaram às forças da Natureza a lhe conceder a benção de que tanto necessitava.
Gratidão à coreógrafa carioca que trouxe um pouco de luz e história africana à nossa 'árida' Capital do Centro-Oeste. Que as feridas do nosso corpo se transformem em energia iluminada neste eterno 'namoro' com a Natureza: de doença e cura, de dor e amor.

Feliz dia dos namorados!

Cenografia no espetáculo "Cura", com alusão à vestimenta do orixá
Brinco "Obaluaê", com cubo low em prata e linha de algodão tingida


domingo, 5 de junho de 2022

Arraiá da vida

 "O mundo que nos rodeia está cheio de feitos fantasmagóricos. Cada momento de nossas vidas está tentando nos dizer alguma coisa, mas nós não nos importamos em ouvir esta voz do espírito. Quando estamos sozinhos e quietos estamos com medo de que algo será sussurrado em nossos ouvidos e assim, odiamos a quietude e nos anestesiamos através da sociabilidade". Trecho da página 225 do livro 'Assombrações', de James Hollis, citação de C.G.Jung (1875-1961)

"Todos os problemas do homem vem de sua incapacidade de ficar quieto em uma sala sozinho". Blaise Pascal, matemático francês (1623-1961)

A humanidade tem estudado milhões de formas para o bem estar, a felicidade, a longevidade, a superioridade, mas ainda nem chegamos perto de atingir os 20% da nossa capacidade cerebral para executar ações simples como levitar. Estou brincando, mas estou falando sério. Vivemos ainda como nossos pais, adoramos por os pés na areia da praia, sentir a terra por entre os dedos, plantar florzinhas no jardim, comer a comida caseira da casa da vovó. Adoramos uma festa junina, um arraiá, uma fogueira, um quentão e um cheiro no pé do ouvido pra esquentá!

A  etimologia de Arraial vem do termo medieval proveniente da origem da conjunção do artigo árabe "al" com o qualitativo "raial" que evoluiu para real, ou seja próprio do rei. (Wikipédia)

Criando um trocadilho para uma metáfora do texto, arraial caberia aqui como um sentimento próprio, real de nós mesmos, próprio da nossa realeza, da nossa luz, raiá de sentimentos, arraiá da vida! Um porto seguro, um recanto, um arraial só nosso, para nos sentirmos únicos em nós mesmos, ou não?!

"Segundo Thomas Hobbes (1588-1679) filósofo e teórico político, o estado deveria ser o agente apto a organizar as relações entre o corpo social, uma vez que o homem tem a tendência ao individualismo e apenas vive em comunidade por ser a melhor forma de permanência". (Revista Científica do Arena, 2019)

Somos uma espécie um tanto ambígua e insuportavelmente misteriosa. Regida pelo corpo, mente e espírito, nos dividimos numa tríade sem saber ao certo como equalizar todas estas virtudes e defeitos. Exercitar os músculos, estudar os enigmas do mundo e escutar aquela vozinha que vem do além não é para qualquer um. Ainda que descubram a fonte da juventude e emerjam milhões em reais ou virtuais, ostentados nas redes sociais como troféus de vitória, estamos todos fadados à morte e à vulnerabilidade das intempéries da Natureza. 

Será que levaremos conosco as vozes perdidas ao léu ou as registraremos oral, por escrito ou em atos para que nossos descendentes possam se reiterar de que nem tudo são matérias ou materiais, mas também um raio de sol, um raiar do dia, um arraiá de sonhos. O invisível, um sussurro, um apelo que precede a luz!

Ilustra o texto obra "Quermesse na Festa Junina" (2012), da artista naif Helena Vasconcelos, que participa até dia 30/06 do FIAN (Festival Internacional de Arte Naif) em Guarabira, PB.


Eu e meu arraiá particular na Festa Junina do Colégio Externato São José, em 2015