domingo, 11 de fevereiro de 2024

Brasil Encarnado

A fabulosa mostra "Bancos Indígenas do Brasil", da Coleção Beī, aberta dia 06/02, na Vila Cora Coralina me fez dar um salto temporal e voltar à mostra da Bienal em comemoração aos 500 Anos de Redescobrimento do Brasil, no ano 2000, no Parque Ibirapuera. Dividida pela temática de acontecimentos no país, a Oca abrigou, além da Arqueologia, o núcleo das Artes Indígenas incluindo uma seção dedicada às inscrições rupestres da Amazônia datadas de 11.200 anos atrás. Apresentou a diversidade das sociedades indígenas brasileiras e reuniu objetos ritualísticos e outros de uso cotidiano recolhidos desde o século XVI até a atualidade.
Reza a lenda e uma antiga mitologia indígena que Kayeb, a Grande Cobra Cósmica, está entre as constelações mais importantes da astronomia Palikur. Kayeb, que é também pajé, avô e fontes das águas, tem uma mão: o Cruzeiro do Sul. Foi ao longo de anos, que a tribo Palikur, guiada pela mão da Grande Cobra Cósmica, ou Cobra de Sete Cabeças para outras tribos, ou Cruzeiro do Sul para os astrônomos da modernidade, previam e marcavam as cheias dos rios pela posição aproximativa que a constelação ocupava no céu. 
"Kayeb se move no céu ao longo do ano, quando a chuva cai as pessoas dizem: 'a mão de Kayeb caiu'." (Lux Vidal, antropóloga, USP). 
O formato da Kayeb, a meu ver uma cobra provida de mão, se assemelhou muito à iguana marinha, um réptil, cuja classe dos seres vivos seria um elo entre os peixes e os mamíferos, como especulam os evolucionistas. (A fotografia de Sebastião Salgado da pata ou "mão" deste réptil me impressionou muito sob este aspecto, ou ainda os relatos de Jeremy Nardy no livro 'A Serpente Cósmica: o DNA e a origem do saber').
Antes do contato com os europeus, os povos originários mantiveram uma relação muito íntima com a astronomia e o xamanismo. Seja por instinto ou intuição, os indígenas se organizaram a ponto de ter um calendário lunar para plantar e colher, realizar seus rituais litúrgicos, confeccionar suas indumentárias sagradas, fazer suas conservas e delegar a divisão sexual do trabalho. 
Certa vez um antropólogo preguntou ao índio qual o motivo de se enfeitarem tanto nos rituais, o índio respondeu que os animais da Terra foram criados com toda beleza, cores e virtudes, mas nós humanos viemos ao mundo nu, sem nada, sem escamas, couro ou plumagem, então precisamos nos enfeitar, nos pintar para sermos belos, assim como os animais. 
Exímios artesãos e artistas, os indígenas apresentam virtudes extraordinárias no talhar da madeira, no bordar dos adornos, no pintar da geometria, no moldar da cerâmica, no cantar, no dançar.
A mostra "Bancos Indígenas do Brasil" é itinerante e passou pelo Pavilhão Japonês Ibirapuera, em junho do ano passado. Foi também, maravilhosamente montada, resgatando o vermelho do urucum, para a pintura de todo o salão de exposição. Esta cor remete ao sangue derramado de confrontos com colonizadores, tribos rivais, testes mortais de sobrevivência. Não só de balas, arcos e flechas, machadadas, facadas e dentadas, mas sangue de estupros, abortos, chacinas biológicas e vinganças antropofágicas. Nossa história é como a cor vermelha, cor da brasa, cor do pau-brasil. É a cor que espanta maus espíritos, mau-olhado. Vermelho é a cor das feridas, que nos alerta o quanto somos vulneráveis, violentos, perigosos e mortais.
Considerações finais
Nota de falecimento ao fotógrafo Rafael Costa, que curiosamente faleceu um dia antes da abertura da mostra em Goiânia. Costa se juntou à constelação de Palikur integrando ao pó e ao brilho das estrelas, comemorando lá de cima o seu nobre propósito aqui na Terra: capturar a alma indígena e revelar para nós como são e o que fazem nossos parentes mais próximos.
Um bom domingo de Carnaval!

 Montagem da mostra "Bancos Indígenas do Brasil", Coleção Beī, no Pavilhão Japonês Ibirapuera
Rafael Costa, fotografia
Artefatos indígenas da Coleção Beī: bancos e a Kayeb, no Centro Cultural Vila Cora Coralina
KAYEB, "Grande Cobra Cósmica", 
Coleção Beī
Etnia:  Palikur, Região: Calha Norte,
Artista: Uwet Manoel Antônio Santos
Sebastião Salgado, fotografia, iguana marinha, Galápagos


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