A beleza do sonhar
O dramaturgo inglês William Shakespeare
(1564-1616) foi representado, ainda bem jovem, como um escritor promissor na série
gótica de HQ’s, Sandman (Neil Gaiman, Netflix, 2022), no episódio “O som das asas dela”. Para quem nunca ouviu falar deste personagem que ganhou o carisma
entre os leitores mais cults de HQ’s, Sandman: homem da areia, ou
o deus dos sonhos: Morfeu, ou na versão de nossos colonizadores portugueses:
João Pestana é conhecido nos contos undergrounds como o filho do Tempo
com a Noite. Ele é o terceiro filho de mais seis irmãos (Destino, Morte,
Destruição, Desejo, Desespero e Delírio), onde vive uma relação disfuncional,
principalmente com o andrógeno irmão, Desejo. Todos estes personagens são uma espécie de
manifestação física de um conceito abstrato, um tipo de Liga da Justiça baseada
em lendas, mitos e religiosidade.
O Sonho, homem da areia (assim denominado por causa das lasquinhas de remela que ficam nos olhos ao acordarmos) é nosso protagonista, responsável pelo Reino do Sonhar. Lá, ele governa e regula com sabedoria e certa austeridade os sonhos dos humanos e as fronteiras metafísicas mais seguras de nossa imaginação. Dentre tantos boicotes e desafios está um que ele mesmo criou, o Coríntio, um implacável pesadelo que possui dentes nos olhos, remetendo à máxima cultural do sonho americano: “ele consume tudo que vê”.
Não por acaso, nem por coincidência, o nome deste pesadelo ser bíblico, há no Reino do Sonhar outros habitantes
descritos no Livro Sagrado, os irmãos Caim e Abel, que vivem em eterno
conflito, reforçando a trágica história do primeiro assassinato da
humanidade. Sandman é uma daquelas metáforas que ficam martelando nossos
pensamentos mais do que os versículos, mitologias e afins. Na série estão
contidas uma miscelânia visceral sobre ética, valores morais, amor, amizade, enfrentamentos e morte. Não é sobre a luta do bem contra o mal, afinal todos os sete irmãos
coexistem como causa e efeito das escolhas dos humanos, é sobre ter algo digno pelo o que sonhar.
Shakespeare transformou
significativamente uma geração com seus sonhos concretizados em peças, tragédias e duras verdades. O
sonho é a forma mais livre e bela para se criar, se inspirar e transformar. Mas
qual o limiar entre o sonhar e o desejar? Esse conflito recorrente entre dois irmãos que se
digladiam para manter um equilíbrio próspero e estabelecer escolhas entre verdades e
mentiras, ordem e caos é o que faz o contraponto desta tênue linha do querer sempre mais, mas com um tanto de moderação. Essa constância da vida é a justificativa filosófica daquilo que não te desafia, não te transforma.
Que saibamos proteger a beleza do
sonhar dos ignóbeis ladrões de plantão e saibamos também policiar as tempestuosidades de desejos vis!
Tenham bons sonhos, sonhem um punhado e desejem com moderação!