domingo, 27 de novembro de 2022

Odisseia Brasileira


Já neste tempo o lúcido Planeta
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo;
E da casa marítima secreta he estava o Deus
Nocturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
Às naus, que pouco havia que ancoraram
.

“Lusíadas”, Luis Vaz de Camões1, 1572


Era uma vez uma afrodisíaca costa litorânea rodeada de palmeiras onde cantavam sabiás, ladeada por madeiras escarlates, de terras mais garridas, de lindos campos com flores e bosques cheios de vida. Ali ancorou lusitanas caravelas, grandes serpentes do mar, trazendo a fruta proibida do Mundo Antigo para a pouca fome de nossos nativos. Despidos de sua nudez, os índios bravejaram:


Sou bravo, sou forte, sou filho do Norte,

Guerreiros, ouvi!

Meu canto de morte,

Guerreiros, ouvi:

Sou filho das selvas,

Nas selvas cresci;

Guerreiros, descendo

Da tribo tupi.

“Juca Pirama”, Gonçalves Dias2, 1851

 

Seu grito foi convertido em preces e orações bíblicas, seus corpos cobertos e seus ritos entorpecidos pelo estrondo da carabina de Caramuru. Moléstias, tristezas e desolação mataram muitas tribos indígenas, restando à grande serpente atravessar novamente o oceano e embarcar em seu interior modelos mais fortes, viris e resistentes. Os africanos desembarcaram aos milhares, se adaptaram bem ao clima e a alimentação, embora muitos adoecessem e morressem de banzo. Aparentemente convertidos à nova religião, os escravos inventariam uma maneira de idolatrar seus próprios deuses, os associando aos santos católicos, clamando em sigilo (em sincretismo) por seus orixás. Forjando danças e rituais litúrgicos em surdina, aplicando lhe fugazes passos da Capoeira, no preparo para uma futura fuga aos quilombos.


Era um sonho dantesco... o tombadilho

Que das luzernas avermelha o brilho.

Em sangue a se banhar.

Tinir de ferros... estalar de açoite...

Legiões de homens negros como a noite,

Horrendos a dançar...

“Navio Negreiro”, Castro Alves3, 1880


Nem a dor, nem as revoltas, batalhas e guerras civis fizeram de nossa nação mais fraca, mais frágil, mais frívola. Pelo contrário. Sabinadas, Balaiadas, Farroupilhas, Cabanagem, Canudos, todas serviram como fortalecimento nacional. Os movimentos populares, os manifestos, os momentos políticos foram todas formas de reações, rupturas, revoluções. Vilas boas, vilas más, grandes e pequenos sertões, ilhas belas, ou feias, aqui um caldeirão de culturas, costumes, contradições, conversões. Caminhando e cantando e ouvindo a canção... Chacinas, golpes, arrastões...


Todo caminho da gente é resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais – a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!... O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza...”

“Grande Sertão: Veredas”, Guimarães Rosa4, 1956


Já dizia o poeta, “só a antropofagia nos une (...) tupi or not tupi”, de Oswald de Andrade5 (1890-1954) à Ferreira Gullar (1930-2016) a brasilidade ganhou voz, cor e geometria! Versos coloridos, encarnados, ensopados, marinados, grelhados, mal passados ou cru... Degustamos de todas as iguarias mundiais sem brio, sem roupa, sem lenço, nem documento.

Fica aqui meu depoimento, meu alento, meu sentimento em pena, em búzios, em cubos e triâmides.  

A Odisseia Brasileira numa despretensiosa jornada autoral ilustrada por uma joalheria artesanal.


Que a sorte me livre do mercado

e que me deixe

continuar fazendo (sem saber)

fora do esquema

meu poema

inesperado

e que eu possa

cada vez mais desaprender

de pensar o pensado

e assim poder

reinventar o certo pelo errado

“Off prince”, Ferreira Gullar6









































Bibliografia

1 Luis Vaz Camões (?1524-1580) considerado o maior 

poeta de Portugal e da língua portuguesa. Escreveu  ‘Os Lusíadas’,

versos épicos, que contam as conquistas lusitanas.

 

2 Gonçalves Dias (1823-1864) poeta romântico brasileiro, nascido

no Maranhão, lembrado como grande poeta indianista. Escreveu versos

para o Hino Nacional. Exilado em Coimbra foi reconhecido mundialmente.

 

3 Castro Alves (1847-1871) poeta e dramaturgo brasileiro, nascido

na Bahia. Recebeu a alcunha de ‘poeta dos escravos’, por se indignar

com os maus tratos e a tirania a qual eram submetidos.

 

4 Guimarães Rosa (1908-1967) romancista brasileiro, nascido

em Minas Gerais. Inovou a literatura com uma linguagem fiel à popular,

sendo premiada e elaborada para diversas linguas.

 

5 Oswald de Andrade (1890-1954) escritor brasileiro, nascido em

São Paulo. Elaborou o Manifesto Antropofágico que propunha ‘devorar’

a cultura e exportá-la para o mundo.

 

6 Ferreira Gullar (1930-2016) escritor e poeta concreto brasileiro,

nascido no Maranhão. Elaborou o Manifesto Neoconcreto que propunha

a interação do espectador com a obra de arte.