Odisseia Brasileira
Já neste tempo o lúcido
Planeta
Que as horas vai do dia distinguindo,
Chegava à desejada e lenta meta,
A luz celeste às gentes encobrindo;
E da casa marítima secreta he estava o Deus
Nocturno a porta abrindo,
Quando as infidas gentes se chegaram
Às naus, que pouco havia que ancoraram.
“Lusíadas”, Luis Vaz de
Camões1, 1572
Era uma vez uma afrodisíaca costa litorânea rodeada de
palmeiras onde cantavam sabiás, ladeada por madeiras escarlates, de terras mais
garridas, de lindos campos com flores e bosques cheios de vida. Ali ancorou lusitanas
caravelas, grandes serpentes do mar, trazendo a fruta proibida do Mundo Antigo
para a pouca fome de nossos nativos. Despidos de sua nudez, os índios bravejaram:
Sou bravo, sou forte,
sou filho do Norte,
Guerreiros, ouvi!
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi.
“Juca Pirama”, Gonçalves
Dias2, 1851
Seu grito foi convertido em preces e orações bíblicas, seus
corpos cobertos e seus ritos entorpecidos pelo estrondo da carabina de Caramuru.
Moléstias, tristezas e desolação mataram muitas tribos indígenas, restando à grande
serpente atravessar novamente o oceano e embarcar em seu interior modelos mais
fortes, viris e resistentes. Os africanos desembarcaram aos milhares, se
adaptaram bem ao clima e a alimentação, embora muitos adoecessem e morressem de
banzo. Aparentemente convertidos à nova religião, os escravos inventariam uma
maneira de idolatrar seus próprios deuses, os associando aos santos católicos,
clamando em sigilo (em sincretismo) por seus orixás. Forjando danças e rituais
litúrgicos em surdina, aplicando lhe fugazes passos da Capoeira, no preparo
para uma futura fuga aos quilombos.
Era
um sonho dantesco... o tombadilho
Que
das luzernas avermelha o brilho.
Em
sangue a se banhar.
Tinir
de ferros... estalar de açoite...
Legiões
de homens negros como a noite,
Horrendos
a dançar...
“Navio
Negreiro”, Castro Alves3, 1880
Nem
a dor, nem as revoltas, batalhas e guerras civis fizeram de nossa nação mais
fraca, mais frágil, mais frívola. Pelo contrário. Sabinadas, Balaiadas,
Farroupilhas, Cabanagem, Canudos, todas serviram como fortalecimento nacional.
Os movimentos populares, os manifestos, os momentos políticos foram todas formas
de reações, rupturas, revoluções. Vilas boas, vilas más, grandes e pequenos
sertões, ilhas belas, ou feias, aqui um caldeirão de culturas, costumes,
contradições, conversões. Caminhando e cantando e ouvindo a canção... Chacinas,
golpes, arrastões...
Todo
caminho da gente é resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais – a gente
levanta, a gente sobe, a gente volta!... O correr da vida embrulha tudo, a vida
é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no
meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza...”
“Grande
Sertão: Veredas”, Guimarães Rosa4, 1956
Já
dizia o poeta, “só a antropofagia nos une (...) tupi or not tupi”,
de Oswald de Andrade5 (1890-1954) à
Ferreira Gullar (1930-2016) a brasilidade ganhou voz, cor e geometria! Versos
coloridos, encarnados, ensopados, marinados, grelhados, mal passados ou cru... Degustamos
de todas as iguarias mundiais sem brio, sem roupa, sem lenço, nem documento.
Fica
aqui meu depoimento, meu alento, meu sentimento em pena, em búzios,
em cubos e triâmides.
A Odisseia Brasileira numa despretensiosa jornada autoral ilustrada por uma joalheria artesanal.
Que
a sorte me livre do mercado
e
que me deixe
continuar
fazendo (sem saber)
fora
do esquema
meu
poema
inesperado
e
que eu possa
cada
vez mais desaprender
de
pensar o pensado
e
assim poder
reinventar
o certo pelo errado
“Off prince”, Ferreira Gullar6
Bibliografia
1
Luis Vaz Camões (?1524-1580) considerado o maior
poeta
de Portugal e da língua portuguesa. Escreveu
‘Os Lusíadas’,
versos
épicos, que contam as conquistas lusitanas.
2
Gonçalves Dias (1823-1864) poeta romântico brasileiro, nascido
no
Maranhão, lembrado como grande poeta indianista. Escreveu versos
para
o Hino Nacional. Exilado em Coimbra foi reconhecido mundialmente.
3
Castro Alves (1847-1871) poeta e dramaturgo brasileiro, nascido
na
Bahia. Recebeu a alcunha de ‘poeta dos escravos’, por se indignar
com
os maus tratos e a tirania a qual eram submetidos.
4
Guimarães Rosa (1908-1967) romancista brasileiro, nascido
em
Minas Gerais. Inovou a literatura com uma linguagem fiel à popular,
sendo
premiada e elaborada para diversas linguas.
5
Oswald de Andrade (1890-1954) escritor brasileiro, nascido em
São
Paulo. Elaborou o Manifesto Antropofágico que propunha ‘devorar’
a
cultura e exportá-la para o mundo.
6
Ferreira Gullar (1930-2016) escritor e poeta concreto brasileiro,
nascido
no Maranhão. Elaborou o Manifesto Neoconcreto que propunha
a
interação do espectador com a obra de arte.