terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O enigmático





O enigmático
          Penso ser bem apropriado, nos tempos de hoje, um artista brasileiro ter o apelido de Tunga. Mais comum em países subdesenvolvidos, a tungíase é uma doença infecciosa de pele causada pela fêmea (Tunga penetrantes), o vulgo bicho-de-pé. Antônio José de Barros Carvalho Mello Mourão é o Tunga, um enigmático cidadão do mundo, que além de conservar um mistério acerca da localidade de seu nascimento, sempre nos surpreende com obras estranhamente familiares e extremamente intrigantes. Pois foi assim mesmo que me senti! Acometida misteriosamente pelos sintomas de uma incessante coceira e irritação nos nervos, que ora aliviava, ora agravava, ao meu primeiro contato com o livro "Tunga - Barrocos de Lírios", editado pela Cosac & Naif, em 1997.
          O livro traz uma poética trajetória artística com registros fotográficos e primordial diagramação, dada a qualidade das imagens dos trabalhos e suas descrições. Desde então o que mais me intrigava era o complexo enredo que o artista criara sobre sua obra Xifópagas Capilares (1985). Através de cartas e poemas dum dinamarquês, o texto no livro, intitulado Xifópafas Capilares entre Nós, descreve o mito de origem de um povo nórdico e relata o nascimento de xifópagas e capilares, que gerou discórdia, discussões e desavenças no país. A narrativa abrange atitudes morais da sociedade e coloca em evidência preconceitos e a salvação através do amor. Depois de lido e relido, recordo-me ainda de divagar à respeito da Rapunzel, cujo final da história, em algumas versões, conta que tendo sido cortados seus cabelos pela bruxa, passa longo período de fome no deserto, mas reencontra seu príncipe e vivem felizes com suas filhas gêmeas no reino.
          Tunga dedicou este livro à sua mãe e à sua tia.
          Em outubro de 2010, numa entrevista do artista à Revista Piauí, dei por mim que suas obras tem um sentido muito mais profundo que supostamente acreditava. Seu avô, Antônio de Barros Carvalho era muito amigo do famoso artista Alberto da Veiga Guignard, que em 1940 pintou a tela, "As Gêmeas". As irmãs eram Léa, mãe de Tunga e sua tia, Maura. Quarenta e cinco anos depois, Tunga apresenta a performance Xipófagas Capilares, onde duas meninas compartilhavam uma cabeleira enorme.
          Trago aqui recente  imagem de Lézart (1989), que está na Galeria Psicoativa de Tunga inaugurada em 2012, no Instituto Inhotim. A sensação que tive ao revisitar sua obra foi aquela coçadinha que alivia e até desperta um certo prazer, entretanto este é apenas o início de uma "infecção psico-artística". Uma reflexão à respeito de alguns valores humanísticos há de nos penetrar paulatinamente, muito além da pele.
          Comungo com as observações do curador Luiz Camillo Osório: "Todo mundo concorda que os trabalhos dele falam do inconsciente, do desejo e da transformação biológica de suas obras, mas esses temas complexos problematizam ainda mais a sua produção (...) apesar de sempre ter tentado entender o Tunga, nunca consegui de fato. A graça dele     está nesse enigma."