domingo, 9 de janeiro de 2022

Caçula

Dizer-vos-eis que sou idiossincrática quando se trata do escritor pernambucano, Gilberto Freyre, principalmente sobre o seu épico “Casa-Grande & Senzala”. E aos que ainda não sabem, carrego tatuado no braço esquerdo o título homônimo do livro, desde 2002. Foi, inevitavelmente, amor à primeira vista, inclusive porque iniciava minha jornada nas artes marciais da capoeira, onde conheci uma dupla de irmãos apelidados com este substantivo próprio composto e descubram voces,  quem era o irmão feio e quem era o irmão bonito!?

“Casa-Grande & Senzala” me acompanhou durante três ininterruptos anos, digo o livro, até que eu conseguisse, enfim, terminar. Ali descobri um mar de conhecimento que abrange história do Brasil, sociologia, antropologia, psicologia, culinária, etimologia, biologia, moda, geografia e por aí vai. Não sou uma leitora ávida, mas depois da trilogia de Freyre não vejo muita graça em romances best-sellers ou blockbusters de plantões. Nossa formação como nação, meu nêgo, não nega atrocidades como as cantadas em canções nórdicas por irlandeses, islandeses e escoceses, ou ainda das repulsivas embarcações bárbaras, sujas, bravias e encarnadas de sangue. Talvez parecêssemos mais com os fados portugueses, uivantes de dor e solidão, em preces plenas numa terra fria e distante, ou seus antecedentes, os mouros, os árabes, oriundos de terras quentes, de gastronomia forte e nutritiva.

Nossa origem europeia harmonizada pelo solo tupi e temperada com dendê e açafrão culminou em misturas férteis de saberes, sabores e sensações.

"Na Bahia, no Rio, no Recife, em Minas, o trajo africano, de influência maometana, permaneceu longo tempo entre os pretos. Principalmente entre as pretas doceiras; entre as vendedoras de aluá. Algumas delas amantes de ricos negociantes portugueses e por eles vestidas de seda e cetim. Cobertas de quimbembeques. De joias e cordões de ouro. Figas de Guiné contra mau-olhado. Objetos de culto fálico. Fieiras de miçangas. Colares de búzios". 

(pg 313 - 22ª Edição, Livraria José Olimpio Editora, 1983, RJ)

E continua:

“As palavras africanas hoje do nosso uso diário, palavras em que não sentimos o menor sabor atravessado do exótico, são inúmeras. Os menos puristas, escrevendo ou falando em público, já não tem outrora, vergonha de empregá-las. É como se nos tivessem vindo de Portugal, dentro dos dicionários e dos clássicos; com genealogia latina, árabe ou grega; com pai ou mãe ilustre. São, entretanto, vocábulos órfãos, sem pai nem mãe definida, que adotamos de dialeto negros sem história nem literatura: que deixamos que subissem, com os moleques e as negras das senzalas às casas-grandes. Que brasileiro – pelo menos no Norte – sente exotismo nenhum em palavras  como caçamba, canga, dengo, cafuné, lubando, caçula, quitute, mandinga, camundongo, munganga, cafajeste, quibebe, quengo, quiabo, batuque, banzo, mucambo, bangüê, bozô, mocotó, bunda, zumbi, vatapá, caruru, banzé, jiló, mucama, quindim, mugunzá, malungo, birimbau, tanga, cachimbo, candomblé? Ou acha mais jeito em dizer ‘mau cheiro’ do que ‘catinga’? Ou ‘garoto’ de preferência ‘muleque’? Ou ‘trapo’ em vez de ‘mulambo’? São palavras que correspondem melhor que as portuguesas à nossa experiência, ao nosso paladar, aos nossos sentidos, às nossas emoções”. (pgs 333/334 )

A palavra em questão, cuja idiossincrasia me instiga sempre a recitar os escritos de Freyre é 'Caçula'. A tomo emprestada dos dialetos bantos da África, carinhosamente representada pela filha mais nova da família. 

Sem mais delongas me atrevo a recitar também os versos do baiano, Caetano Veloso:

“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. 

Ilustra o texto "Colar Búzios", braço tatuado e desenhos de árvores dos artistas Carlos Cordeiro e Wés Gama.








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