domingo, 1 de agosto de 2021

A primeira aula

 Há mais de 20 anos pratico a luta-arte da capoeira. Aprendi história brasileira, aprendi coordenação motora (principalmente bater palmas), aprendi a tocar instrumentos rudimentares (o que é um bom começo para quem não sabe nada ou nunca teve muitos exemplos na família) e também apendi a respeitar os limites do meu corpo. No processo deste aprendizado a iniciação é através de um batizado onde se recebe a primeira corda e daí por diante é treino e dedicação. Como fui uma aluna atípica, comecei com 21 anos (que normalmente é a idade da primeira corda de professor), fui aos poucos me aprimorando, sem muita pressa, mas com constância. Depois de quatro ou cinco anos fui autorizada a ministrar aulas para uma aluna recém chegada ao ginásio de esportes da Esefego, onde meu grupo treinava. Ela era negra, muito magra, olhos esbugalhados e tristes. Seu cabelo crespo em compridas tranças bem feitas denunciavam o príncípio de sua pré-puberdade. Foi um desafio! Não recordo de escutar o som da voz dela. Me esforcei para passar com habilidade os movimentos básicos àquela 'pós-criança' que nem me olhava direito. Tive medo de errar ou conduzir mal a minha responsabilidade de ensinar, mas mais ainda de causar algum desconforto na garotinha. Foram apenas duas ou quase três semanas seguidas, depois ela desparaceu. Um dia, no terminal de ônibus onde eu costumava pegar a condução para ir aos treinos ela me viu! Puxou a minha corda despretenciosamente e apontou para uma senhora alguns passos à frente. Pensei: "Meu Deus, serei repreendida pela mãe. Será que ela falou que não gostou de mim? Dá tempo de sair correndo"... A mulher se aproximou lentamente e a garota falou: "É ela, é ela, é ela que é minha professora, mãe". E finalmente consegui escutar a sua voz e ver um lindo sorriso no seu rosto, de onde se ergueram seus lábios carnudos e pude ver também seus brancos dentes brilhantes. A mãe me cumprimentou e me agradeceu pelas aulas. Disse que não tinham tempo nem dinheiro suficientes para levar a garota aos treinos no ginásio. Me contou que a filha nunca mais parou de falar sobre mim e do quanto se orgulhava de ter tido aquelas poucas aulas. Eu agradeci e entrei no ônibus chorando. Foi muito comovente!

Quando o artista Tarcísio Veloso concluiu sua obra "A primeira aluna", 2020, não tive dúvidas que teria de adquirir o retrato. A personagem é a feição perfeita de Tainá, minha primeira aluna. Sua mãe me confidenciou que a filha falava que o nosso nome começava com as mesmas letras e que ela se sentia muito bem por isso. Coincidências ou não, por ironia do destino, o 'retrato' de Tainá está na minha cabeceira, assim como os mestres de capoeira estão no 'altar' de suas academias.

Ilustra o texto óleo sobre tela de Tarcísio Veloso e minha paródia com brincos e anel da Coleção Rococó.




2 Comentários:

Blogger Helena Vasconcelos disse...

Lindíssimo texto.uma bela obra e uma foto TB. Parabéns. Essas lembranças permanecem p sempre.

1 de agosto de 2021 às 10:51  
Blogger TatianadePoT | blogsPoT.com disse...

Obrigada, professora! :)

2 de agosto de 2021 às 13:11  

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